Ataques à Previdência Social

Por Sonia Latgé* 

Na economia, e não na política, os fins justificam os meios, mesmo os mais absurdos. Essa é a infeliz percepção que se tem ao analisar as condições para a aposentadoria que a ditadura do pensamento único liberal quer impor aos que pretendem conciliar o bem do país com o seu futuro. A idéia é a seguinte: para evitar o pior, cada trabalhador deve se conscientizar sobre a importância de equacionar o seu caso pessoal a fim de garantir por algum meio a sua aposentadoria.

É uma concepção privatista, que tem como meta o completo desmonte da previdência pública construída com luta. A previdência pública é uma das mais significativas conquistas da “era Vargas”. A maioria dos brasileiros deve a esse legado, além da Seguridade Social — que abrange a Previdência Social, a assistência médica e a assistência social —, os benefícios decorrentes do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), do PIS/Pasep e da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins).

Com a chegada dos neoliberais ao poder, o caminho para o acesso a esses benefícios se transformou numa estrada esburacada. A imposição da visão mercantilista deturpou o píncípio de solidariedade que estava presente no conceito de contribuição previdenciária. O que é uma contribuição previdenciária? É um seguro que as pessoas pagam ao longo da vida pelo ''risco'' de sobreviverem após seu período no mercado de trabalho. O benefício deveria ser calculado levando-se em conta o desenvolvimento econômico do país, o volume de renda gerado durante o período em que o trabalhador esteve na ativa e os rendimentos desse fundo público criado pelo aporte coletivo das contribuições individuais. É um conceito social.

Coisas diferentes

Mas, para o pensamento neoliberal, a contribuição previdenciária deve ser um conceito de ''mercado'', como se o trabalhador fosse um acionista de uma empresa. A diferença, básica e fundamental, é que um produz valor e recebe pouco, e outro não produz valor e recebe muito. Os reformistas dizem que a Previdência deveria ser encarada como uma poupança que se acumula durante décadas para ser usufruída nos anos finais da vida do trabalhador.

De propósito, os adeptos dessa crença estabelecem uma enorme confusão entre Previdência Social e assistência social. Nas contas brasileiras, elas aparecem misturadas. Mas é importante reconhecer que são coisas diferentes. Assistência social é o que se gasta, em geral com os mais pobres, em programas de distribuição de produtos, serviços ou dinheiro, sem nenhum tipo de exigência financeira por parte dos beneficiários. Uma obrigação do Tesouro Nacional — como tem dito o presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva que, no entanto, ainda parece permitir que essa lógica privatista contamine um de seus mais importantes ministérios: o da Previdência Social.

Tempo de serviço

Em um país pobre como o Brasil, programas desse tipo são importantes e bem-vindos. Mas é preciso não confundi-los com Previdência Social, que tem efeito redistribuitivo. No Brasil, essa arquitetura resultou numa construção altamente sofisticada. O sistema foi montado de forma que as contribuições acumuladas e as aposentadorias a serem pagas se dessem de forma que as pessoas trabalhassem umas para as outras A partir de uma certa idade, todos têm direito de receber aposentadoria, a despeito de quanto foi pago ao sistema.  

Talvez o maior exemplo de justiça social deste modelo é a ausência de uma idade mínima na hora da aposentadoria. Vale o tempo de serviço. Até a década de 50, só podia se aposentar quem completasse 50 anos. Em 1960, a data-limite subiu para 55 anos. Em 1962, o limite de idade caiu. Prevaleceu, desde então, um outro tipo de cálculo: a aposentadoria por tempo de serviço. Isso queria dizer o seguinte: quem trabalhasse 35 anos (ou 30, no caso das mulheres) podia se aposentar qualquer que fosse sua idade.

Vagabundos mentais
 
Para os neoliberais, isso gerou uma quantidade enorme de aposentadorias “precoces” no país e motivou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) a chamar de vagabundo quem se aposentava por esse sistema. Não havia nada de “precoce” nisso. Imagine o exemplo de alguém que começou a trabalhar aos 15 anos. Aos 50, poderia se aposentar. Já alguém que começasse a trabalhar mais tarde, conseqüentemente se aposentaria mais tarde.

Num país de baixos salários e farta força de trabalho, onde há “precocidade”, injustiça ou “vagabundagem” nisso? Só os vagabundos mentais — ou os mal intencionados — podem advogar essa tese de FHC.  Pelo raciocínio neoliberal, sim, a tese de ''privilégio'' defendida pelo ex-presidente faz sentido.

Ataques à previdência pública

Segundo a Federação Nacional de Previdência Privada e Vida (Fenaprevi), que congrega 89 empresas do setor, a captação dos planos de previdência privada foi recorde para o primeiro trimestre do ano em 2008. Foram registrados aportes de R$ 7,3 bilhões nos primeiros três meses do ano, 23% a mais do que os R$ 5,3 bilhões investidos nesse tipo de aplicação no mesmo período de 2007. O número de contratos de previdência privada voltados para quem tem menos de 18 anos cresceu 71,12% em 2007, com acumulado de R$ 1,984 bilhão sobre R$ 1,159 em 2006. Em 2003, a média de idade das adesões era 39 anos. Hoje, o cliente padrão tem 34 anos. 

Isso já é fruto de toda uma ideologia que tenta fragilizar a consciência dos trabalhadores e trabalhadoras na defesa de seu patrimônio previdenciário. Mas todos sabemos que o mundo dos planos privados, sejam eles fechados (co-patrocinados pelas empresas mantenedoras) ou abertos (oferecidos pelo sistema financeiro) não servem à imensa maioria dos trabalhadores, que não têm sequer tempo para estudar os diversos e complexos aspectos envolvidos em investimentos de longo prazo – além de representarem valores que são sempre significativos face à média salarial brasileira.

Jogo perigoso

Assim, entendo que não há saída para a classe trabalhadora brasileira que não passe necessariamente pela previdência pública — até porque raros são aqueles assalariados que podem participar de empresas que mantenham fundos de pensão fechados ou ainda participar dos planos abertos de previdência privada. E submeter-se aos seus mecanismos é ainda um jogo perigoso. É só analisar o caso da "Aerus" para reforçar o alerta.

De certa forma, é esse jogo perigoso que vem ocorrendo com os ataques à previdência pública e o crescimento da previdência privada, que obriga a CTB a colocar esse debate no centro de suas preocupações, pautando a defesa da previdência como uma de suas maiores batalhas.

A volta da idade mínima

Este crescimento da previdência privada ocorre ao mesmo tempo em que ganha força no noticiário econômico a defesa da aposentadoria por tempo de contribuição com base na idade mínima de 55 anos (para mulheres) e 60 (para homens). Ou ainda 63 (para elas) e 65 (para eles). Hoje, independente da idade, mulheres podem se aposentar com 30 anos de contribuição à Previdência e homens, com 35.

Tudo isso na contramão da decisão do Senado Federal, que, por meio do trabalho incansável do senador Paulo Paim, aprovou o fim do fator previdenciário que foi criado pela “era FHC” para regular a aposentadoria de acordo com a expectativa de vida dos trabalhadores — quanto mais cedo se aposentam, menor o valor do benefício. O pretexto é a insustentável tese de que a Previdência Social é deficitária.

O problema é apresentado como um Titanic, o coração do déficit público brasileiro. O mantra foi formulado na “era FHC” com o engodo de que o déficit da Previdência Social é um jogo de matar ou morrer. A questão é saber quem mata e quem morre. A CTB não só não aceita a volta da ladainha sobre a idade mínima como coloca agora à Câmara dos Deputados e ao próprio governo que lutaremos sem trégua para pôr uma pá de cal no fator previdenciário. 

Obscenidade social

É a parcela da sociedade interessada na aposentadoria — ou seja, os trabalhadores — que tem de responder se pretende canalizar recursos públicos para o setor privado ou se o dinheiro da contribuição previdenciária será revertido em seu benefício. Uma ação destinada a impedir a obscenidade social e ética que é a pregação neoliberal sobre o sistema previdenciário.

O problema é que os neoliberais trabalham para um setor da economia interessado no sistema de aposentadoria privado: as seguradoras e os bancos. Milhares de pessoas já recorreram a bancos ou a empresas de pecúlio e depois de anos de contribuição muitas nem sequer viram a cor do dinheiro porque algumas das instituições que o gerenciavam faliram. Há também casos de pessoas que recebem ninharias que nem sequer pagam um cafezinho. Se os reformistas forem vitoriosos, eles terão a tão sonhada previdência privada; e os trabalhadores terão a previdência ''piada''.

* Secretária dos Movimentos Sindicais do PCdoB e professora no Rio de Janeiro